28 de setembro de 2010

O contador de histórias

POR: Ivan Brandão

Saindo um pouco da segmentação que acabou sendo feita por sermos muitos grupos constituíndo um só, segue um conto escrito por mim há dois anos atrás. Tem muita coisa a ver com o tema do blog e é uma forma mais lúdica de abordar o tema. Espero que gostem.


De quando em vez, ele vinha a meu encontro, tirava seu chapéu em sinal de reverência e me pedia fumo. Apesar de tratar-se de um apedeuta, foi o maior contador de histórias que o bairro viu. Nessa esquina da Glória imortalizada pela boemia mesclada entre a Zona Sul e o Centro, ainda existia esse tipo de gente, sem casa, parecendo que mora na rua, que é de todos afinal. E ninguém sabia seu nome. O chamavam apenas, Virgulino Lorota. Apesar de senhor, tinha energia de criança. Pele calejada pelo tempo, sorriso banguela e riso debochado, flamenguista doente. Nunca ouvi uma reclamação sair de sua boca. Dizia ele: - Problema todo mundo tem, e os meus problemas não interessam a ninguém -. Usava uma camisa do Brizola e o defendia como se fosse um verdadeiro cientista político, nunca vi igual. Contador de histórias que só ele mesmo. Pra pedir um café pro Antonio do bar era uma história, daquelas boas de ouvir. Para pedir carona pro Geraldo, motorista do 485, era outra história, daquelas que te pegam atrasado para o trabalho e mesmo assim, você escuta até o final perdendo completamente a hora. Apesar de estapafúrdias, as historias de Virgulino eram cativantes e nunca se repetiam. Às vezes mentirosa e engraçada, como a que conta o dia em que ele dormiu em cima da prancha na praia do Flamengo e acordou tomando um caldo em Pipeline no Hawaii. A que eu mais gostei foi a da vez em que ele e mais dois amigos, foram revistados por guardas municipais no Aterro. Sei que no final da história, deram um sopapo e roubaram as fardas dos pobres coitados. Trabalhou sete meses incorporando um cidadão, um tal de Sargento Noronha. Virgulino era uma piada.

Foi ficando famoso nos bairros adjacentes também, sua idade ninguém sabia, mas estipula-se entre 100 e 170 anos de idade, não se espante! Virgulino, só conhecendo pra saber. Nunca leu um livro e fala de poesias. Faz até sonetos improvisados. Diz que tomou cerveja com Machado de Assis, deu dicas de estilística à Lins do Rego e até brincou carnaval com Madame Satã, e se brincar que os dois namoraram, Virgulino nega, mas lembra com brilho no olho. Nunca foi à escola, mas conta histórias de um Rio de Janeiro onde a Avenida Rio Branco ainda era Avenida Central. Diz que lembra do Corcovado sem o Cristo e que ajudou Jesus a lá botar. Sempre trajando as mesmas vestes, chegava de manhã cedo e ganhava um café da manha do Antonio. Dois de pinga e um de limão. Dizia ele que sem um trago, não começava o dia. Houve quem pensasse que por viver embriagado sempre, era perigo para a vizinhança, mas nunca fez mal a uma mosca, tinha ele a malandragem e a inocência lúdica carioca. Cresci pedindo fiado no bar e não lembro de ter passado um dia sem ouvir um causo de Virgulino. E o tempo não passava pra ele. Continuava sempre com a mesma feição alegre, porém divagante. A mesma voz e o mesmo cantinho sujo ao lado da Cândido Mendes onde se aconchegava nas noites de frio. Já mais velho, passei a pagar o Antonio em dia, senão eu era alvo das fofocas da Lapa até o Santo Amaro. Virgulino passava, me via e tinha que pedir um cigarro. Ele afirmava com veemência que aquele era o único que fumava durante o dia e que só fumava porque era um cigarro meu. Não sei de onde ele tirou isso. O tempo de apagar o cigarro era o tempo em que ele me contava algum causo e ia embora para o Centro ganhar a vida. Cresci ouvindo seus devaneios sobre a vida que foi, a vida que é e a que será. Às vezes até sobre vidas que não existiram ou que existiram e ninguém sabe, só ele.

Dias atrás, acordei cedo, acendi um cigarro e não sei porque, havia um ar de tristeza. Desci, atravessei a rua e fui pedir meu café no bar. Cheguei lá e vi que estavam separados, um copo, uma Pitú e metade de um limão. - Cadê o lorota Antônio? – Perguntei por perguntar, mas era como se eu já soubesse a resposta. – O Virgulino não tá mas entre nós não meu rapaz, quando dona Juçara foi levar um cobertor pra ele hoje de manhã o coitado já não tava respirando, o rabecão saiu agora pouco. Acredita que encontraram a identidade dele? O nome do cara era José. Mais um José que se vai do mundo, nunca teve nada, morreu sem nada. Coitado.

Tomei meu café, acendi um cigarro e o deixei queimando sozinho, acendi um pra mim, traguei e fui-me embora. José, para nós, Virgulino Lorota, morreu sorrindo, disse dona Juçara, e nos deixou um vazio. Morreu com méritos por ter vivido o pão que o diabo amassou, ter morrido com um sorriso no rosto e a proeza de, nunca em sua vida, ter repetido uma história sequer. Levou-as consigo. Quem vive a vida na sua síntese, “Vida na vida” como ele dizia, muito mais tem a oferecer ao próximo, do que quem vive uma vida na sua casa, na sua empresa, no seu boteco. Virgulino viveu. Até hoje, ninguém desacredita que ele deve estar junto de outros grandes “Lorotas”, trajando um esporte fino na Academia Brasileira de Letras no céu, ala dos autodidatas sensorialmente diferenciados. A Glória nunca mais foi a mesma.

2 comentários:

  1. Me chamo Felipe, e sou amigo do Ivan. Vejo de perto o talento dele, representado por esse belíssimo texto...Quem depois de ler isso, não sente um vazio por não conhecer Virgulino Lorota?

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  2. Sou suspeita para falar vc Ivan, além de ser uma das componentes do seu grupo e sua amiga. Já te disse uma vez que vc é meu "intelectual crush" e não é à toa q vc vai ser meu sócio ; ) Impecável.

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